terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Capítulo II

Miracle… Ela foi o maior milagre da minha vida.

Eu tinha apenas quatro anos quando ela veio mudar para sempre o meu destino, como uma fada. Mais linda do que uma fada, mais brilhante do que uma fada, mais meiga do que uma fada… mais poderosa do que uma fada. Eu não podia acreditar que ela fosse outra coisa.

Veio, não sabia eu de onde, deu-me atenção, tomou conta de mim e fez-me saber que alguém me amava. Quando precisou de ir embora, fiquei preso na escuridão novamente. Ela tinha de voltar para casa. Ela tinha uma casa. Ela tinha uma família.

Para não a deixar sair de perto de mim, agarrei-me ao pescoço dela sem intenções de largá-la e chorei. Não queria perder a melhor coisa que me tinha acontecido. Ela tentou afastar-me, mas também chorava. Tentava acalmar-me e prometeu voltar para me levar com ela.

Passaram-se dois anos. Durante algum tempo, eu sonhei com essa fada em quem acreditava que voltaria para me salvar. O tempo tornou-se cruel.

Durante meses eu acreditei tê-la perdido para sempre.

Mas a minha mãe estava doente. Uma amiga dela, cujo nome já não recordo, encontrou-a caída no chão, levou-a para o hospital. Ela foi internada, levaram-na para um quarto. Eu também fui para o hospital. Não tinha para onde ir, deixei-me ficar ali. Permaneci acordado ao lado da cama dela até a minha cabeça começar a pender com o sono. A enfermeira reparou em mim e trouxe-me uma manta para me tapar do frio. Fiquei ali quieto, silencioso, durante dias. Ninguém notava a minha presença, senão ela, que me trazia uma pequena refeição ao almoço e um lanche ao jantar.

Sem que se desse conta disso, eu chorava todas as noites.

Mas um dia… um dia tranquilo naquele hospital, eu vi a minha fada entrar pela porta do quarto. Quando reconheci aquele brilho, um sorriso de verdadeira alegria tomou conta da minha cara. Esse sorriso espalhou-se por todo o corpo, dando-me uma vontade súbita de correr na direcção dela. Já não me lembrava que nome tinha, apenas me lembrava que era ela.

A Miracle abraçou-me. Nunca tinha sentido um abraço tão forte, tão quente… – Prometi-te que voltava, não prometi? – Pegou-me ao colo e fez-me uma festa na ponta do nariz. – Vamos, amiguinho? Temos um avião para apanhar…

- E a mãe?

Ela olhou para a cama em que a minha mãe estava deitada. O sorriso dela desapareceu. – Ela fica bem… Podemos vir visitá-la sempre que quiseres… Só vim buscar-te porque… estarás melhor connosco, lá em LA. Que me dizes?

Confuso, aceitei a proposta. Ela pôs-me no chão. Corri até à cama da minha mãe. Ela estava muito cansada. Fez-me uma festa muito fraca na cabeça. – Vai com ela… Sê sempre o menino bem-educado que és… E nunca de te esqueças de agradecer a Deus todos os dias pela família que Ele te deu… Ryan… bebé… perdoa-me…

A Miracle tinha-se aproximado e pegado na minha mão. Começou a puxar-me para fora daquele quarto, daquele hospital e, por fim, daquele país. Foi com ela que me tornei no homem que fui. Se fiz alguma coisa da minha vida, devo-o a ela…

Minha tia… Minha amiga… Minha mãe…

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Capítulo I

Há muitos anos, tempo suficiente para já não me lembrar ao certo de como tudo era então, eu tive vinte e quatro anos de idade. Tinha grandes, alegres olhos azuis, um sorriso ainda de menino e não tinha grande preocupação em ter sempre a barba feita. Gostava de sair com os meus amigos, fazer surf e ir ao ginásio com o meu irmão. Levava a vida "numa boa", sem me preocupar com o futuro que tinha garantido com o testamento dos McAdams.

Tinha acabado o curso de Engenharia de Arte e Audiovisuais e o meu sonho para me tornar um realizador conceituado começava a ganhar um caminho. O Brod também estava entusiasmado. Na cerimónia de final de curso, ele parecia, e com certeza era, o “pai” mais feliz daquele lugar. Ofereceu-me uma câmara de filmar bastante boa e deu-me o conselho de seguir o meu sonho mais do que qualquer outra coisa, “à excepção, claro, do verdadeiro amor. Por ele, podes e deves abandonar tudo o que esteja no caminho. Sem ele nunca serás verdadeiramente feliz, nem mesmo tendo o teu sonho concretizado!” Essa era a sua filosofia de vida. Essa era um filosofia que eu não entendia, apenas respeitava. Eu nunca tinha estado apaixonado, apesar da minha adolescência já passada, por isso, tudo o que ouvia sobre verdadeiros amores, não mexiam nem um bocadinho comigo.

Eu não era mau, insensível ou desrespeitador. Era, simplesmente... muito infantil nesses assuntos. Conhecia a história daquele casal tão bem como conhecia a mim próprio. Atravessaram tantas barreiras para estarem juntos...! Quem melhor que eles para conhecer o verdadeiro significado desse grande mistério que era, para mim, o amor...?

Miracle e Brod... Apesar dos vinte e cinco anos de diferença que existia entre eles, e tendo isso sido um dos grandes obstáculos que necessitaram de abater, e seis anos após terem assumido um ao outro o seu amor, finalmente conseguiram ficar juntos.
Quando isso aconteceu, eu já estava com a Miracle. Já a minha verdadeira mãe me tinha deixado partir de Elizabeth, na Austrália, para a Holanda com a irmã.

Lembro-me vagamente do lugar de onde vim. Ao contrário da Miracle, que sempre sentiu o desejo de encontrar o pai, eu nunca quis procurar aquela mulher. Não tinha, não tenho raiva dela. Sei o que fez e porque o fez. Talvez nunca tenha tentado saber dela por medo, um terrível medo de saber que estava doente, maltratada, morta... Tudo isso seria possível com a minha mãe.

Só depois de eu e a Miracle voltarmos da Holanda é que ela e o Brod se casaram.

O Brod era alguém excepcional! Com um grande sorriso nos lábios, e uma alegria fora de série nos grandes olhos de um castanho muito escuro, recebeu-me de braços abertos e, ali mesmo, prometeu-me que seríamos muito felizes.

Quando o Peter nasceu, já eu tinha quase sete anos. Parece que foi ontem que aquela exacerbada alegria entrou na nossa casa! O Brod pegava no bebé pela primeira vez. Sentou-se ao meu lado. – Olha, Ryan... Repara bem... Não vai demorar muito tempo até que estejamos os três a brincar com uma bola de basquetbol maior que ele...!

E foi verdade! Muito cedo, o Peter começou a pedir a bola que tinha em cima do guarda-fatos. Em questão de alguns meses, já corria atrás da bola que eu e o Brod fazíamos passes picados a poucos centímetros dele!

O tempo foi avançando. Eu deixava de ser um menino muito maduro e começava a compreender o que eram as crises existenciais típicas da adolescência. Essa era um dos grandes temas que o Brod sempre aproveitara para gozar comigo. – Crises existenciais são coisas de menina, rapaz! Sai lá da casa de banho, que eu estou com pressa! Tratas do acne depois!

Desde muito cedo descobri que o meu futuro estaria no mundo do cinema como realizador. Queria escrever um guião que mudaria o mundo, escolher actores que interpretassem os papéis destinados com tanto empenho que fariam a sociedade parar. Queria abordar o grande assunto! Apenas não sabia ao certo qual era o grande assunto dos dias então.

O Brod apoiava-me ao máximo nesse meu plano. Dizia, sempre que tocava no assunto, que se reconhecia em mim: “o grande sonhador dos filmes que queria ser notado pelo menos uma vez. Apenas espero que consigas concretizar esse sonho. Eu não consegui...”

Desejava, mais do que tudo ser como ele. Ele era o meu pai! Era quem estava sempre lá, para o bem e para o mal, com a palavra ideal que eu precisava de ouvir. Não era um falhado, professionalmente falando, mas um grande homem.

Prefácio

Contar a minha história... Há tantos anos que tento ganhar coragem para fazê-lo... É um dever meu. A Miracle sempre me disse que teria de fazê-lo um dia. A mãe dela fez, tal como ela, trinta anos depois. Agora eu, quase sessenta anos depois da última vez que alguém escreveu uma palavra sobre a nossa família. Estou velho. Não sou bom com palavras, nunca fui. Na verdade, como dizia a Miracle, nunca tive jeito para demonstrar o que me vai na alma.

O que me levou a abrir o coração começou com uma visão. Não acreditei no que via e, quando acreditei, senti-me a pessoa mais horrível do mundo. Pelo menos a mais injusta e cruel. Foi uma prova. Foi, digamos, uma derrota que se precedeu a uma grande vitória.

Aqui estou eu, sentado em frente do computador a escrever com muita dificuldade. Cada frase, cada palavra faz-me pensar na história que chegou a altura de partilhar. O meu coração sorri, os meus olhos choram, as minhas mãos tremem.

Na fotografia, o Puppy, já fraco mas feliz, descansa em frente à lareira com o focinho escondido entre as patas dianteiras, talvez a sonhar com o mesmo que sonho todos os dias. Talvez a recordar as alegrias que ela lhe deu. Talvez a chorar a sua despedida. No dia em que tirei essa fotografia, achei que podia guardar para sempre a imagem de um cão que parecia sentir precisamente o mesmo que eu. Até dele eu sinto falta. Compreendiamo-nos mutuamente nos momentos de dor, partilhávamos sempre todas as horas de alegria. Éramos o que se podia, de longe, chamar família.
Está frio. Estará? Lá fora, passam raparigas com vestidos primaveris e rapazes com calções. Ontem mesmo ouvi falar, pela primeira vez este ano, em praia. Talvez o frio que sinto seja a falta dela. Talvez seja falta de mim. Falta da juventude, falta da liberdade daquele tempo. Tempo de vida, tempo de alegria, tempo proveitoso a tantos amores... A amores como o meu.

Tenho uma caneca enorme cheia de chocolate quente que diz “Que contes mais sessenta pela frente!”. Não, não quero mais sessenta anos pela frente! Não quero mais sessenta anos sem o trago a menta que o chocolate quente dela tinha. Não quero mais sessenta anos sem a gargahada dela. Não quero mais sessenta anos sem ela!

O meu único desejo é contar quem ela foi. Contar o que ela foi para mim. Continuar a história que devia ter tido um fim há muitos anos, quando fui viver com a Miracle e o Brod. Essa história, sim. Essa história teve um “felizes para sempre” no fim. Eles mereciam-no, depois de tudo.

Quanto a mim... eis o que vão descobrir.